EVOÉ! - RETRATO DE UM ANTROPÓFAGO
Zé Celso Martinez Corrêa é um homem sedutor. Deixar-se seduzir por seu personagem é a força e a fraqueza de Evoé – Retrato de um Antropófago, documentário que acompanha os passos do fundador do arrebatador Teatro Oficina, no bairro do Bixiga, em São Paulo, e seu papel na cultura nas últimas quatro décadas.
Força porque, frente a uma pessoa que atua o tempo inteiro, cuja potência do discurso e do comportamento desconcertam o interlocutor, o filme decide saltar no escuro e chamar o espectador para uma experiência. Registrar o tipo de encenação teatral feita no Oficina não é fácil. Mais difícil ainda é limitar a volúpia de Zé Celso dentro de um enquadramento rígido.
Todavia, a sedução implica também uma fraqueza: a adesão irrestrita do filme a seu personagem. Em momento algum, Zé Celso é confrontado pela direção de Tadeu Jungle (diretor de Amanhã Nunca Mais) e Elaine César (videomaker que há muito registra os trabalhos do Oficina).
Não falo do confronto jornalístico e a suposta necessidade do “outro lado”, mas do desejo cinematográfico de expor as contradições do personagem e torná-lo ainda mais complexo.
Com isso, Evoé – Retrato de um Antropófago constrói e mantém um discurso de sustentação de Zé Celso, habilmente seduzindo o espectador. Um personagem ultra-articulado, ainda atual e figura fundamental numa das respostas alternativas à Ditadura Militar (1964-85), o desbunde. Um homem cujo requebrado performático seduz numa realização mediada.
Seria, porém, uma boa contribuição ao documentário se surgisse, ao lado do afeto, o questionamento. Qual a influência no discurso radical do teatrólogo ir para uma novela pela primeira vez aos 74 anos? Mesmo depois de cinco décadas, por que seu trabalho ainda ofende a pequena burguesia? Qual o impacto, na trajetória de Zé Celso, do malicioso apelido de “decano do ócio”, que lhe foi atribuído nos anos 80? É sempre harmônica a relação dos atores do Oficina com um trabalho tão visceral e uma condução personalista do teatro-ícone do Bixiga?
Por outro lado, Evoé – Retrato de um Antropófago passa pelos principais acontecimentos da vida do encenador. A prisão e a tortura pela Ditadura Militar, a força libertadora de O Rei da Vela, peça de 1967, o exílio, a briga com Silvio Santos pelo espaço do teatro – com direito a uma impagável visita do Homem do Baú ao terrão do Oficina –, o reconhecimento das montagem pós-anos 90 são alguns aspectos trazidos pelo filme.
Ilustrador em alguns momentos, arriscado em outros, esquivando-se do confronto. Um filme que, com eficiência, apresenta, a quem ainda desconhece, um Zé Celso além das performances – se é que há a possibilidade de encontrar um momento dele que não seja encenado. Mas, além de reverenciar, o documentário perde a chance de cutucar.