O ABORTO DOS OUTROS
"Ninguém nasce mulher: torna-se mulher". A primeira frase escrita por Simone De Beauvoir no livro O Segundo Sexo 2 - A Experiência Vivida (1949) - primeira obra a discutir o papel da mulher na sociedade contemporânea e a cunhar o termo feminismo - é de uma honestidade cruel, brutal e fascinante. Definir-se mulher carrega em si significados sutis e papéis sociais nem sempre compreendidos em sua complexidade. A maternidade é um desses temas nos quais a protagonista da história poucas vezes é ouvida com a seriedade e profundidade que deveria, especialmente quando seu desejo vai contra a idéia (e, por que não dizer, a idealização) de que toda mulher se realiza ao ser mãe, que isso é sempre uma "dádiva". O próprio título do documentário de Carla Gallo, O Aborto dos Outros, propõe uma reflexão sobre esta questão.
Em O Segundo Sexo, existe o Eu, parâmetro de medida para as relações sociais, e o Outro, aquele definido pelo parâmetro do dominante. Parece-me que não vivemos numa sociedade de igualdade direitos, na qual os papéis sejam divididos meio a meio, ou será que sim e, nós mulheres é que não fomos informadas? Por séculos, alguns assuntos considerados exclusivamente do universo feminino foram mantidos num mundo paralelo, velados e íntimos, e por isso tornam-se grandes tabus; simplesmente foram relegados ao silêncio por conta da moral vigente.
Enquanto na esfera pública - leia-se países em desenvolvimento - a descriminalização do aborto é discutida observando critérios científicos e religiosos ou mesmo norteado pela pergunta: o momento quando começa a vida?, a mulher que carrega esta vida continua tendo suas opiniões negligenciadas, consideradas secundárias. Que mães serão as mulheres que não querem ser mães?
Ao tratar o aborto sob a perspectiva feminina, ou seja, ouvindo as experiências das mulheres que decidiram interromper suas gestações amparadas pela lei ou clandestinamente, O Aborto dos Outros coloca a mulher no lugar que é seu de direito: o centro da discussão.
O Aborto dos Outros capta com sensibilidade os conflitos, a dor e o alívio. Trata suas personagens de forma extremamente carinhosa ao mostrar todo o processo desde a chegada ao atendimento nos hospitais públicos até o momento quando o procedimento é realizado. Ao incluir depoimentos de profissionais de saúde como psicólogos, assistentes sociais, médicos e acompanhantes constrói uma narrativa complexa e a situa no dia-a-dia.
A diretora costura as histórias dessas mulheres com delicadeza numa narrativa que não esconde a dureza e as contradições do tema. A ausência de trilha sonora para pontuar momentos dramáticos e catárticos é uma escolha bastante relevante; o que toca, emociona, revolta são as revelações mais íntimas compartilhadas.
Num país onde são realizados, segundo as estimativas, um milhão de abortos por ano - a maioria clandestina -, falar somente dos procedimentos legais seria deixar muitas mulheres de fora da discussão. Alguns depoimentos são chocantes por mostrarem realidades e violências (não só físicas) muito cruéis. Neste sentido, as mulheres são duplamente condenadas: pela falta de autonomia política e de direito sobre o próprio corpo, são passíveis de penalidades criminais ao decidirem interromper uma gravidez voluntariamente; se optarem por abortar mesmo assim, são obrigadas a fazerem o procedimento clandestinamente. Com isso, as mais atingidas são, claro, as mais pobres, que se sujeitam a situações horríveis.
Os enquadramentos - trabalhados em fragmentos para proteger a identidade das mulheres que fizeram o aborto ilegal e de um dos casos mais fortes, uma menina de 13 anos estuprada - trazem outra reflexão importante para humanizar um personagem não é necessário expô-lo. É preciso respeito para enxergar o outro.
Um filme necessário para uma discussão fundamental. Vale ressaltar que no Brasil, o aborto é previsto por lei somente nos casos de estupro e de risco de morte para a gestante, hoje, discute-se no Supremo Tribunal Federal que não seja obrigatório a autorização judicial também para os casos de anencefalia.