"Quando o sistema resolve nos punir, a gente não se cala", diz diretor de Cabeça de Nêgo
Aclamado pelo público e pela crítica após exibições em festivais, Cabeça de Nêgo, dirigido e roteirizado por Déo Cardoso, é um manifesto contra o racismo e a precariedade do sistema educacional no Brasil. O filme cearense com Lucas Limeira, Val Perré e participação especial de Jéssica Ellen, chega às salas de cinema.
Rodado na cidade de Fortaleza, trata de temas urgentes como a luta contra o racismo e o facismo, mobilização estudantil, ação popular direta, consciência coletiva, precarização do sistema de educação e contextos de opressão socioeconômica. E conversamos com o diretor
Déo Cardoso
Nascido nos Estados Unidos e naturalizado brasileiro, o diretor e roteirista Emerson Déo Cardoso tem especialização em Dramaturgia, pelo Instituto Dragão do Mar de Arte e Cultura (Fortaleza, CE), e Mestrado em Cinema pela Universidade de Ohio, Estados Unidos.
Após roteirizar e dirigir 5 curtas-metragens de ficção e 2 documentários, Déo está lançando seu primeiro longa-metragem de ficção.
O filme
Com uma narrativa envolvente, Cabeça de Nêgo examina o universo da escola pública em sua potência de revolução social. Na trama, inspirado por um livro dos Panteras Negras, o jovem Saulo Chuvisco tenta impor mudanças em sua escola e acaba entrando em conflito com alguns colegas e professores.
Após reagir a um insulto racista, ele é expulso, mas se recusa a deixar as dependências da escola por tempo indeterminado, dando início a uma grande mobilização coletiva.
"Resolvi contar essa história pra expressar minhas inquietações acerca de um país que, após alguns avanços na educação pública, voltou a cortar investimento no setor. Escrevi o filme em 2015 e 2016, justamente quando o país ensaiava o retrocesso que viria nos anos seguintes", conta Déo Cardoso, diretor e roteirista de Cabeça de Nêgo.
Críticas sociais
É um filme com questões relevantes e urgente "Trata-se de uma história que não só expõe nossas veias abertas desde os tempos coloniais, mas que elege como protagonistas as pessoas que lidam com o descaso no dia a dia na educação pública: as juventudes periféricas, sobretudo as pessoas negras. O filme mostra, acima de tudo, como essas pessoas se articulam pra reverter a situação de opressão. A história é realista e forte por conta disso. O filme mostra que, quando o sistema resolve tentar nos punir, a gente não se cala e elabora estratégias de reação", completa o diretor.
Racismo estrutural
O filme aborda uma discussão sobre o racismo e precariedade do sistema educacional público brasileiro, mas falar sobre racismo no Brasil é mais do mesmo. "A inaceitável ofensa racial cotidiana, que ocorre no início do filme, é só o disparador praquilo que realmente eu queria abordar e acho importante debater no país: a necessidade de dar um basta nisso tudo", conta o cineasta.
A principal discussão do filme se concentra em várias estratégias e possibilidades de enfrentamento ao racismo e ao projeto de precarização da educação pública. "O filme quer debater as formas como nosso povo se rearticula e trava novas estratégias de enfrentamento ao racismo quando o sistema nos ataca. E como a gente reage também contra as opressões econômicas que se refletem dentro de uma escola precaria.", completa o cineasta.
Presente sombrio
O filme representa um momento de se levantar e resistir. "Infelizmente estamos atravessando um desses períodos nefastos e sombrios que já vivemos no passado. A diferença é que agora a opressão se capilarizou para além da violência institucional. O culto à intolerância é latente e visível em comentários odiosos que vemos nas redes sociais em vários níveis", explica.
Mas o sistema tenta se manter intacto. "O paradoxo é que alguns grupos querem ter a liberdade pra decidir quem deve ser livre ou não. Mecanismos de manutenção de privilégios, uma das grandes características das elites atrasadas do Brasil, são responsáveis por verdadeiros genocídios e por manter a maioria das pessoas em situação de vulnerabilidade sócio-econômica. Quando uma norma de manutenção de privilégio é acionada, é preciso questioná-la", explica.
"Essa é a essência da desobediência civil. Sem esse mecanismo de questionamento, como as que foram promovidas por Nelson e Winnie Mandela no regime do apartheid, por Mahatma Gandhi na Índia colonialista, ou por Martin Luther King , Malcom X, e os Panteras Negras nos EUA, uma sociedade não avança no caminho da justiça social", conclui Déo Cardoso.
Reflitam
O filme foi feito para trazer reflexões. "Gostaria muito que o público médio brasileiro tirasse desse filme, enquanto mensagem, é a de que podemos, com pequenos atos no cotidiano, decidir nosso próprio destino enquanto povo, enquanto coletivo, se unirmos nossas forças em busca de um ideal comum: um país economicamente mais justo, educado e sem o fantasma do racismo a nos assombrar constantemente", revela o cineasta.
Vida impacta a arte
O filme foi rodado em 28 dias, mas uma tragéda mudou o peso da história. "Na metade das filmagens, soubemos do brutal assassinato de Marielle e isso provocou um debate entre diretor e elenco, aumentando nossa responsabilidade em contar essa história. E um comentário importante: esse filme só foi realizado graças ao investimento governamental em políticas públicas de acesso às cultura, reforçando a importância de políticas públicas no audiovisual, nas artes, e no setor da inclusão econômica em geral", finaliza Déo Cardoso.
Assista
Impactante, o filme traz uma história poderosa e contundente, repleta de questões sociais relevantes. Vale muito à pena ver nosso cinema entregar o que pode de melhor. O longa já está nos cinemas. Veja o trailer: